ARTIGO

Atualizações em raiva humana no Brasil: quais são os nossos principais reservatórios?

Publicado

Mar/2023

13 min

artigo hero

A osteomielite é uma inflamação do tecido ósseo causada por um agente infeccioso. Trata-se de uma infecção de erradicação difícil em qualquer cenário clínico e é uma doença muito heterogênea em relação à apresentação clínica, à fisiopatologia e ao tratamento.

Dra. Jane Megid

Dra. Jane Megid

CRMV-SP 03756
Professora titular, aposentada e voluntária, de Enfermidades Infecciosas dos Animais da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Botucatu, SP. Membro do Comitê Internacional de Raiva nas Américas.

Globalmente, a raiva ainda ocorre em um percentual muito elevado. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 59.000 pessoas morrem devido à raiva a cada ano, o que representa uma pessoa a cada nove minutos. Desse total de óbitos, 40% são crianças que vivem na Ásia e na África, que apresentam raiva canina e humana de forma endêmica. Nesses países, os cães são responsáveis pela quase totalidade dos casos humanos.1 É possível evitar essas mortes, pois, apesar da letalidade em praticamente 100% dos casos, a raiva é uma doença completamente prevenível pela vacinação.1 (Figura 1)

figura 1

Em 1983, os países das Américas, com o apoio da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), comprometeram-se a eliminar a raiva humana transmitida por cães por meio de vacinação dos cães, vigilância epidemiológica e educação em saúde.2 Em decorrência dessa ação desenvolvida com sucesso, atualmente o Brasil controlou a raiva canina e apresenta somente casos esporádicos.1,2

A cobertura vacinal nos cães determina o percentual de raiva canina. Se há uma queda na cobertura vacinal, ocorre aumento do número de casos de raiva canina. Além disso, há decréscimo dos casos de raiva humana, se houver incremento da cobertura vacinal. Dessa forma, a vacinação canina é extremamente eficiente em eliminar ou controlar a raiva.3 (Figura 2)

figura 2

Os morcegos são reservatórios dos Lyssavirus, incluindo o vírus rábico, em todos os continentes. No Brasil, a partir da intensificação da vigilância epidemiológica, observou-se alteração do perfil epidemiológico, com aumento do número de casos de raiva em morcegos. No ano de 2019, foram registrados 1.047 casos de raiva em animais, sendo o maior número de casos em bovinos (42,8%), seguidos de morcegos não hematófagos (36,4%) e equinos (8,5%).4 Os morcegos hematófagos mostraram-se positivos em 3,4% dos casos.4

Para determinar se os herbívoros de produção de determinado local também são animais de risco, é necessário conhecer o tipo, a frequência e o grau do contato ou exposição que os tratadores e outros profissionais têm com esses animais e levar em consideração o risco epidemiológico da doença na localidade.5
 

Animais silvestres
 

Todos os animais silvestres, como morcego de qualquer espécie, micos (sagui ou “soim”), macaco, raposa, guaxinim, quati, gambá, roedores silvestres, cachorro-do-mato e felídeos selvagens, devem ser classificados como animais de risco, pois a patogenia da raiva não é bem conhecida nesses animais.5

Os morcegos hematófagos (Desmodus rotundus) são popularmente associados à transmissão da raiva. Entretanto, na realidade, há positividade para raiva em várias outras espécies de morcegos não hematófagos, tanto insetívoros como frugívoros, que muitas vezes são responsáveis, inclusive, pela raiva em pequenos animais no Brasil.4,6

Um estudo sobre a epidemiologia da raiva em animais selvagens no Ceará mostrou que, de um total de 11.931 amostras de animais examinadas de janeiro de 2003 a dezembro de 2013, a positividade para raiva ocorreu em 438 amostras (3,67%), sendo 229 (52,28%) animais domésticos, 105 (23,97%) canídeos silvestres e 104 (23,74%) outros animais silvestres (morcegos, saguis e guaxinins). Durante o período estudado, foi registrado um total de 1.923 ataques a humanos por canídeos selvagens.7

Atualmente, a vigilância epidemiológica demonstrou que os casos de raiva em cães e gatos são causados pela variante 3 de morcegos hematófagos, encontrada também no morcego frugívoro Artibeus lituratus, e pela variante compatível com canídeos silvestres desde 2016. Em 2018, dos 11 casos de raiva canina e felina com identificação de variantes, 46% eram pela variante 3 e 38,5%, por variantes de canídeos silvestres. Em 2020, foram registrados 14 casos de raiva canina (85,7%) e felina (14,3%), sendo 78,5% causados por variantes de canídeos silvestres e 14,5%, por variante 3, e em um caso não foi identificada a variante. No ano de 2021, foram confirmados 22 casos de raiva canina (54,5%) e felina (45,5%), com 54,5% causados por variante de canídeos silvestres e 22,7%, por variante 3, e em 13,6% não foi possível sequenciar a variante.8
 

Canídeos silvestres


O comportamento humano é uma das principais ameaças à vida silvestre, como ocorre na destruição dos habitats. Os seres humanos interferem até mesmo na dispersão de doenças, como ocorre na raiva nos canídeos silvestres, em especial nas raposa-do-campo (Lycalopex vetulus) e nos cachorros-do-mato (Cerdocyon thous), que passaram a entrar nas áreas urbanas.5

A distribuição e a frequência dos casos de raiva confirmados em cães domésticos e cachorros-do-mato ou raposas, no período de 2016 a 2021, mostraram 173 casos em cachorros-do-mato ou raposas. Os estados mais acometidos proporcionalmente foram o Ceará (40,7%; n=70), seguido da Bahia (27,9%; n=48), Rio Grande do Norte (15,7%; n=27), Pernambuco (11,1%; n=18), Maranhão (4,7%; n=8) e Piauí (1,2%; n=2).5

Primatas


O sagui, popularmente conhecido como “soim”, é um animal silvestre criado em cativeiro pela população rural do Ceará. Os saguis são uma espécie de grande importância epidemiológica na cadeia de transmissão do ciclo silvestre da raiva.9

Entre os anos de 1991 e 1998, ocorreram nove casos de transmissão de raiva por saguis, com destaque para o ano de 1991, com quatro registros. Em 2010, houve um e, em 2013, dois casos de transmissão de raiva humana por saguis nesse estado.9
 

Transmissão


O  vírus penetra no organismo, multiplica-se no ponto de entrada e atinge o sistema nervoso periférico e, posteriormente, o sistema nervoso central. Depois, dissemina-se por via nervosa para vários órgãos e glândulas salivares. A glândula salivar é tecido não nervoso onde ocorre replicação do vírus rábico e consequente eliminação viral pela saliva. Animais infectados transmitem a raiva principalmente por meio da mordedura e lambedura em contato com mucosas, podendo ser transmitida também pela arranhadura, especialmente de felinos.10

Nos cães e gatos, a eliminação de vírus pela saliva ocorre de dois a cinco dias antes do aparecimento dos sinais clínicos e persiste durante toda a evolução da doença. A morte do animal acontece, em média, entre cinco e sete dias após a apresentação dos sintomas até no máximo 10 dias, que é o período considerado para observação de animal com suspeita clínica de raiva.8

Não se sabe ao certo qual o período de transmissibilidade do vírus em animais silvestres. Entretanto, os morcegos podem albergar o vírus por longo período, sem sintomatologia aparente, no entanto, contrariamente ao que se acreditava, eles adoecem e morrem por raiva.8
 

Surtos de raiva humana


Em 2004, foram relatados dois surtos de raiva humana no Pará, causados por morcegos hematófagos, e, em 2005, um surto no município de Augusto Corrêa, também no Pará. Nesse mesmo ano, quatro municípios no estado do Maranhão também relataram surtos de raiva. Em 2018, houve novo surto por raiva em Melgaço, no arquipélago do Marajó, no Pará.11,12 (Figura 3)

figure 3

Todos esses casos estavam fortemente relacionados à proximidade da população com o habitat natural dos animais silvestres, como as matas.11 Além disso, o processo de desmatamento, a presença de moradias que permitem a entrada de morcegos e os baixos indicadores socioeconômicos são fatores de risco para a infecção pelo vírus da raiva em populações ribeirinhas.5 

Ao observar o perfil da raiva humana por espécie agressora no Brasil, a região Norte tem predominância de acidentes com morcegos hematófagos, e ainda há focos de raiva por cães no Nordeste, principalmente no Maranhão, além da presença dos animais selvagens nessa região.4 (Figura 4)

figura 4

Reemergência da raiva em cães e gatos


É importante lembrar que os animais domésticos devem ser mantidos com a vacinação em dia. Atualmente, as campanhas ocorrem apenas onde há foco da doença, e tem-se observado reemergência da raiva em cães e gatos devido aos eventos com morcegos, com cachorros-do-mato e com raposas, ou seja, pelo ciclo silvestre. Após a infecção, os animais domésticos, especialmente os gatos, podem causar a infecção em humanos. Esse ciclo, chamado de secundário, foi observado inicialmente no Brasil, mas também ocorre em outros países da América do Sul. A reemergência em pequenos animais reforça a necessidade da vacinação rotineira, independentemente da ausência de campanha de vacinação nacional contra a raiva canina.13


A Organização Mundial da Saúde elaborou um plano de eliminação global da raiva humana causada pelo cão até 2030. Apesar de a epidemiologia da raiva apresentar-se de forma diferente no Brasil, com a transmissão de raiva por animais silvestres a cães e gatos, a vacinação dos animais domésticos permanece essencial.

A Organização Mundial da Saúde elaborou um plano de eliminação global da raiva humana causada pelo cão até 2030. Apesar de a epidemiologia da raiva apresentar-se de forma diferente no Brasil, com a transmissão de raiva por animais silvestres a cães e gatos, a vacinação dos animais domésticos permanece essencial.1

Compartilhar

    Referências

    1. World Health Organization.
      Zero by 30. The global strategic plan to end human deaths from dos-mediated rabies by 2030.
      Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/272756/9789241513838-eng.pdf. Acesso em: 8 nov. 2022.
    2. Pan American Health Organization.
      Rabies.
      Disponível em: https://www.paho.org/en/topics/rabies. Acesso em: 8 nov. 2022.

    3. Brasil. Ministério da Saúde.
      Cobertura vacinal de cães e gatos.
      Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/cobertura-vacinal-de-caes-e-gatos. Acesso em: 8 nov. 2022.

    4. Brasil. Ministério da Saúde.
      Secretaria de Vigilância em Saúde.
      Boletim Epidemiológico. 2020;51(16):27-32.

    5. Brasil. Ministério da Saúde.
      Secretaria de Vigilância em Saúde.
      Boletim Epidemiológico. 2021;52(48):7-17.

    6. Rocha SM, de Oliveira SV, Heinemann MB, Gonçalves VS.
      Epidemiological Profile of Wild Rabies in Brazil (2002-2012).
      Transbound Emerg Dis. 2017;64(2):624-33.

    7. Cordeiro RA, Duarte NF, Rolim BN, Soares Júnior FA, Franco IC, Ferrer LL, et al.
      The Importance of Wild Canids in the Epidemiology of Rabies in Northeast Brazil: A Retrospective Study.
      Zoonoses Public Health. 2016;63(6):486-93.

    8. Brasil. Ministério da Saúde.
      Raiva animal.
      Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/raiva-animal. Acesso em: 8 nov. 2022.

    9. Duarte NFH, Pires Neto RDJ, Viana VF, Feijão LX, Abreu KG, Melo IMLA, et al.
      Epidemiology of human rabies in the state of Ceará, Brazil, 1970 to 2019.
      Epidemiol Serv Saude. 2021;30(1):e2020354.

    10. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Articulação Estratégica de Vigilância em Saúde.
      Guia de Vigilância em Saúde.
      5ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2021.

    11. Rodrigues EDL, Freitas TA, Paiva FAZ, Pereira AS, Coelho TFSB, Rosa EST, et al.
      Prevalência de raiva animal no estado do Pará, no período de 2004 a 2013.
      Rev Pan-Amaz Saude. 2018;9(4):57-62.

    12. Brasil. Ministério da Saúde.
      Raiva humana.
      Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/raiva-humana Acesso em: 22 nov. 2022.

    13. Lucca T, Rodrigues RCA, Nische A, von Zuben APB.
      Ações de vigilância e controle da raiva frente a caso positivo em felino no município de Campinas, São Paulo, Brasil.
      BEPA. 2017;14(163):29-37.