ARTIGO
A insuficiência cardíaca congestiva e seus desafios na prática clínica
Publicado
Ago/2022
13 min
A insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome clínica complexa. Os aumentos dos sinais e sintomas de congestão são as principais razões pelas quais os pacientes com IC aguda procuram atendimento médico de urgência. Os diuréticos são a pedra angular da terapia.
Dr. Márcio Gonçalves de Sousa
CRM-SP 85697
Chefe da Seção de Hipertensão Arterial, Tabagismo e Nefrologia do Insti¬tuto Dante Pazzanese de Cardiologia. Especialista em tratamento contra o tabagismo na Mayo Clinic, em Rochester, nos Estados Unidos. Líder em controle global do tabagismo da Universidade John Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos. Research Fellow da UCSF, em São Francisco, nos Estados Unidos.
Introdução
A insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome clínica complexa, na qual o coração é incapaz de bombear o sangue de forma a atender às necessidades metabólicas tissulares, ou pode fazê-lo somente com elevadas pressões de enchimento. Tal síndrome consiste em sintomas cardinais (como falta de ar, inchaço e fadiga) que podem ser acompanhados por sinais (como pressão venosa jugular, crepitações pulmonares e edema).
Ela ocorre devido a uma anormalidade estrutural e/ou funcional cardíaca, que resulta em pressões intracavitárias elevadas e/ou inadequado débito cardíaco em repouso e/ou durante o exercício.1
Essa síndrome está associada a uma mortalidade elevada, estimando-se que, ao atingir fases sintomáticas mais avançadas, a sobrevida média de um paciente com IC ambulatorial seja de 50% em cinco anos. Associa-se também à elevada morbidade, com redução da capacidade para esforços e sintomas debilitantes.2
Essa síndrome pode ser resultado da evolução de várias formas de cardiopatia, sendo mais comumente secundária à doença isquêmica do coração, à hipertensão arterial e ao diabetes mellitus. No Brasil, além dessas formas, a cardiomiopatia chagásica crônica agrega-se como causa frequente de IC em muitas regiões.3 Identificar a etiologia da disfunção cardíaca subjacente é obrigatório no diagnóstico da IC, pois a patologia específica pode determinar o tratamento subsequente. Mais comumente, a IC se deve à disfunção miocárdica: sistólica, diastólica ou ambas. No entanto, patologia das válvulas, pericárdio e endocárdio, anormalidades do ritmo cardíaco e condução também podem causar ou contribuir para a IC.1
A história natural da IC é caracterizada por episódios de descompensação aguda, que estão associados ao aumento da morbidade e mortalidade e representam um ônus econômico para nossa sociedade. Nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, inclusive o Brasil, a IC é uma entidade com prevalência elevada e incidência em forte ascensão, sendo intimamente vinculada ao envelhecimento populacional. Estima-se que, no mundo todo, de 6% a 8% da população acima de 65 anos tenha IC.4 Em 2030, estima-se que 8 milhões de americanos terão IC e, além da alta prevalência, é uma das principais causas de morte, impactando o sistema de saúde pelo aumento da taxa de hospitalização. Em 2012, o custo total foi de US$ 30,7 bilhões e, até 2030, espera-se que aumente em 127%, para US$ 69,7 bilhões.5,6
Os aumentos dos sinais e sintomas de congestão são as principais razões pelas quais os pacientes com insuficiência cardíaca aguda procuram atendimento médico de urgência.7 Dado o papel central da congestão na insuficiência cardíaca, os diuréticos são a pedra angular da terapia na IC e as diretrizes recomendam o uso de diuréticos de alça (DA) para aliviar os sinais e sintomas de sobrecarga de líquidos (classe I, nível de evidência B).1,8,9
Classificação
A FEVE (fração de ejeção do ventrículo esquerdo) é uma importante ferramenta na classificação de pacientes com IC devido ao prognóstico e resposta diferenciados aos tratamentos, e porque a maioria dos ensaios clínicos seleciona os pacientes com base nessa medida.
O tratamento da IC
Os objetivos da terapia em pacientes com congestão e excesso de volume consistem em:10,11
- Obter um descongestionamento completo sem resíduos de sobrecarga de volume. No entanto, o ponto de parada ideal de terapia descongestiva é muitas vezes difícil de determinar;
- Garantir pressões de perfusão adequadas aos órgãos;
- Manter a terapia médica orientada por diretrizes, pois esses medicamentos também podem aumentar a resposta diurética e melhorar a sobrevida a longo prazo.
Quando pacientes com ICFEr ou ICFEp descompensam, muitas vezes podem apresentar um perfil semelhante de congestão.12,13 Portanto, o objetivo da terapia descongestiva é similar quanto ao uso de diuréticos em pacientes com ICFEr e ICFEp.14
A farmacoterapia é a base do tratamento da IC e existem três objetivos principais:
- Redução da mortalidade;
- Prevenção de internações recorrentes por piora da IC;
- Melhora do quadro clínico, capacidade e qualidade de vida (QOL).1,15
Os princípios gerais da farmacoterapia na ICFEr são a modulação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e do sistema nervoso simpático e o uso dos inibidores do cotransportador sódio-glicose 2 (iSGLT2), que demonstraram melhorar a sobrevida, reduzindo o risco de hospitalizações por IC e os sintomas em pacientes com ICFEr. O quarteto de um inibidor da ECA e/ou um inibidor da neprilisina e receptores da angiotensina (INRA), um betabloqueador, um antagonista dos receptores mineralocorticoides (ARM) e um iSGLT2 é recomendado como terapia fundamental para esses pacientes, a menos que os medicamentos sejam contraindicados ou não tolerados.1
Finalmente, os diuréticos são a classe terapêutica mais largamente utilizada em pacientes com ICFEr para alívio de congestão. Isso se justifica pelo efeito terapêutico ao provocar diurese e alívio da sobrecarga volêmica. No entanto, não há ensaio clínico randomizado (ECR) que tenha demonstrado aumento de sobrevida com uso de diuréticos em pacientes com IC crônica ambulatorial. O estudo DOSE (Diuretic Optimization Strategies Evaluation) até hoje é o único ensaio clínico multicêntrico que avaliou diferentes estratégias de uso de diuréticos, porém envolveu apenas pacientes com IC agudamente descompensada.16 O uso de tiazídicos em pacientes com pouca resposta a doses crescentes de DA tem sido recomendado em estudos observacionais ou ensaios de pequeno porte.17
Uma recente revisão sistemática e metanálise combinada realizadas por Eid et al.18 avaliou a eficácia relativa e segurança de todos os diuréticos disponíveis usados no tratamento de pacientes com IC. Todos os ECRs comparando os diferentes diuréticos usados na IC foram incluídos na análise e, dentre os 54 estudos incluídos (10.740 pacientes), 34 ECRs foram elegíveis para metanálise quantitativa e outros 20 estudos qualitativamente. Não houve diferença significativa entre os agentes em relação à taxa de filtração glomerular (TFG), extração de água e excreção de sódio. Em relação aos efeitos colaterais, não houve diferença significativa entre os diuréticos observados em termos de readmissão hospitalar e taxas de mortalidade.
Dados recentes do registro não randomizado OPTIMIZE-HF (Organized Program to Initiate Lifesaving Treatment in Hospitalized Patients with Heart Failure) revelaram redução da mortalidade por todas as causas em 30 dias e hospitalização por IC com uso de diurético em comparação com nenhum uso de diurético após a alta hospitalar por IC.19
O uso da furosemida na prática clínica
Os diuréticos são a base da terapia para sobrecarga de volume. Existem várias classes de diuréticos, cujos mecanismos de ação, farmacocinética e uso clínico constituem princípios básicos da nefrologia, mas o manuseio clínico com os DA, como a furosemida, é recomendado para reduzir os sinais e/ou sintomas de congestão em pacientes com IC.20 Apesar da evidência em relação aos diuréticos ser pobre sobre a morbidade e mortalidade nos ECRs, devemos lembrar que os principais ensaios de tratamento modificador da doença para a ICFEr foram realizados com alto uso de DA.1 Uma metanálise mostrou que, em pacientes com ICFEr, os DA e tiazídicos parecem reduzir o risco de morte e levar à piora da IC em comparação com placebo e, em comparação com um controle ativo, os diuréticos melhoram a capacidade de exercício.21
Os DA formam a espinha dorsal da terapia diurética na IC aguda, sendo usados em mais de 90% dos pacientes.22 Eles são fortemente ligados a proteínas (>90%) e precisam ser secretados no túbulo contorcido proximal por meio de vários transportadores de ânions orgânicos. Portanto, a dosagem adequada com níveis plasmáticos suficientes é fundamental, pois a perfusão renal é frequentemente reduzida na insuficiência cardíaca, resultando em secreção diminuída dos DA. Além disso, a diminuição do conteúdo de proteínas plasmáticas pode resultar em secreção reduzida dos DA. Eles inibem o transporte Na‑K‑2Cl na alça ascendente de Henle e têm o efeito diurético mais potente, promovendo a excreção de sódio e cloreto (e potássio, embora em menor grau que os tiazídicos). A biodisponibilidade da furosemida administrada por via oral é altamente variável (10% a 90%) e é determinada pela absorção do trato gastrointestinal na corrente sanguínea.23
O objetivo da terapia diurética é alcançar e manter a euvolemia com a menor dose de diurético. Em alguns casos, em pacientes euvolêmicos/hipovolêmicos, o uso do diurético pode ser reduzido ou descontinuado.24 Os pacientes podem ser treinados para autoajustar sua dose de diurético com base no monitoramento de sintomas/sinais de congestão e medidas de peso.
Conclusões
Os objetivos do tratamento da IC são dinâmicos e variam de acordo com o seu estágio. Esforços devem ser feitos para reduzir a readmissão e melhorar a qualidade e longevidade de vida. Na presença de congestão, a furosemida continua sendo uma medicação fundamental no tratamento de pacientes portadores de IC.
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